quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Sobre a linguagem (outro)

Pegando um pouco no assunto que o Abraão trouxe no post anterior, deixem-me só referir umas quantas coisas. Primeiro, aquelas questões que Abraão levantou sobre a definição de omnipotente significar deus, como: então não pode ser deusa?, ou não pode ser um ser maléfico?, ou não pode ser um ser superior?, essas perguntas não me parecem ter sentido, porque temos de olhar para essa definição no contexto que lhe é próprio. A de ser deus ou deusa é trivial; deus ou deusa é igual, e, como é idiossincrático da nossa língua, tendemos a usar o masculino em situações não familiares. Por exemplo, quando nos referimos a um cão na rua, usamos (quase todos nós pelo menos) a palavra cão, e não cadela. É algo sintomático da linguagem, não me parece ser relevante para o caso. Depois se pode ou não ser um ser maléfico – porque não? Nada na palavra deus ou outros equivalentes indicam sobre a malvadez ou bondade de quem se refere. Nada se refere contra haver deuses bons ou maus. Ser deus não indica necessariamente uma personalidade bondosa ou malvada. Pode ser malvado sim, como pode não ser. Acho que temos de ter isso em conta. Agora o de não poder ser um ser superior. Bem, acho que Abraão já se está a desviar extremamente do contexto linguístico. Estávamos na definição de omnipotente, que um dicionário diz significar deus. Ora, neste contexto, temos de ter em atenção que omnipotente, tal como a palavra indica, e sem precisar de grandes análises, significa na sua forma mais simples e literal todo (omni-) potente, ou, numa forma mais familiar, todo poderoso (porque podemos usá-los como sinónimos ou até podemos definir um pelo o outro se a quem estivermos a explicar seja compreensível dessa forma). Já me estou quase a perder também. Portanto, dizer que deus significa omnipotente, ou vice-versa, é em si uma definição se, a quem estivermos a explicar, passemos este mesmo significado, isto é, o “todo poderoso”. Tal como deus é definido por um ser todo poderoso, omnipotente é definido como a qualidade do todo poderoso, assim omnipotente pode ser definido por deus, desde que faça sentido no contexto em que é usado.

A seguir Abraão refere-se à primeira definição dada pelo dicionário que diz que omnipotente significa que pode tudo – o mesmo que todo poderoso, portanto. E passa a enunciar mais umas quantas questões sobre se a dona maria, como ele chama ao deus bíblico (o deus cristão suponho) pode ser maléfica, se pode destruir a humanidade, enfim, e por aí fora. Pela qualidade de omnipotente, esta dona maria pode fazer todas essas coisas. Isto é, tem esse potencial. Nada significa que realize todo esse potencial, tal como nós temos o potencial de jogar no euromilhões e sairmos vencedores, o que não signifique que isso vá acontecer. E eu sei que algumas questões parecem levantar paradoxos – se ela pode tudo, pode então levantar toda e qualquer coisa, então como pode criar algo que não possa levantar? Mas bem, como já disse, ela tem o potencial para criar algo desse género, mas temos de perceber que se ela o fizesse, para evitar o paradoxo, perdia a qualidade de omnipotência. O que à primeira vista parece um paradoxo, é na realidade um potencial paradoxo. Com a língua podemos divagar, disparatar, manipular palavras e sentidos a nosso belo prazer. É algo intrínseco à linguagem. A linguagem é (e eu sei que vou revelar alguma influência wittgensteiniana, mas já deviam estar à espera), como nós a conhecemos, um artifício criado por nós para nos ajudar a comunicar e não o contrário. Pode ser vista, a linguagem, como um jogo de cariz social, em que as regras são, tal como nós, orgânicas, e dependentes de grupo social para grupo social. O contexto é um objeto em que a linguagem é usada enquanto função para o grupo. Contexto neste caso engloba a situação concreta, para além dos membros do grupo e suas qualidades, atributos e toda a história individual (isto é, de cada membro) e coletiva. Tudo isto para dizer que, a linguagem enquanto função é melhor percecionada e compreendida por grupos com maior afinidade entre os seus membros. Usar a frase: “deus é omnipotente” entre um grupo de, por exemplo, religiosos cristãos, tem um significado para eles, que pode significar por exemplo – deus é todo poderoso; deus tem um poder ilimitado, portanto incompreensível; o poder de deus é incompreensível no sentido em que apenas nos é possível idealizar deus com um poder total dentro dos parâmetros do real que nós conhecemos – logo, alguém vir dizer a este grupo de religiosos cristãos que a afirmação “deus é omnipotente” é ridícula, de cariz paradoxal, ou que não tem rigor linguístico, não tem sentido dentro deste grupo específico, pois a palavra omnipotente tem a função que já referi anteriormente para este grupo. 

Revela inocência pensar que a linguagem tem um cariz universal, ou que todas as palavras têm de significar o mesmo para todas as pessoas. Uma palavra não é nada mais do que um sinal de algo; um marcador dum objeto, seja ele concreto ou abstrato. E a linguagem é idiossincrática, tal como nós, e apenas tem o sentido que nós lhe quisermos dar, independentemente de definições de outrem. A linguagem não é lógica ou transversalmente significativa. Não significa nada para além de si própria. É apenas uma função para facilitar a compreensão. Uma única forma de linguagem não é solução para o entendimento de todo e qualquer grupo de pessoas. Dizer que deus é omnipotente serve para passar o significado pretendido dentro do grupo de religiosos cristãos (continuando com o exemplo anterior) e ficam-se por aí. 

É claro que escrutinar estes significados e analisar de uma forma mais fria e distante uma forma de linguagem usada por um grupo específico levanta questões que podem parecer não fazer sentido, serem paradoxais ou ridículas, quando na verdade o sentido e significado da linguagem existe apenas dentro do grupo. Mas não deixa de ser divertido, eu admito isso, e Abraão é sem dúvida adepto do escrutínio linguístico, mas é um adepto demasiado fervoroso por vezes, e ele sabe. 

Bem, vou ficar por aqui que isto já foi muita linguística por hoje.

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